Companhia de Natal – Capitulo I
24 DEZEMBRO 2000
Era final de tarde no dia da consoada. O frio fazia-se sentir como se o inverno quisesse impedir as pessoas de se esquecerem que era Natal.
Natália e Joaquim – os Bessa – saíam do minimercado com as últimas compras para a noite de consoada.
‘Uma moedinha para a minha noite de consoada…’ – dizia um mendigo, sentado junto à porta da mercearia.
Os Bessa nem o ouviram. Joaquim caminhava tranquilamente, com as suas calças de ganga e camisola de gola alta castanha. Carregava quatro sacos nos braços. Natália, de saltos altos e sobretudo branco, fechado até aos joelhos, acelerava o passo e reclamava que já não teria tempo de fazer todos os doces que planeara ter na mesa nessa noite.
Largaram as compras na bagageira do carro, e ao ligá-lo, este não pegava.
Ao fundo, junto à porta do supermercado, o mendigo olhava-os fixamente. Joaquim rodava a chave na ignição várias vezes na esperança de que o carro estivesse apenas distraído na primeira vez que o tentara ligar.
‘Querido, olha ali!’
‘Espera…’
‘Não, mas olha… o sem-abrigo está a acenar-nos.’
Joaquim ergueu os olhos e viu o homem: barbudo, sujo, com vestes pretas e frágeis e um gorro esburacado. Gesticulava: apontava para o carro, depois para si mesmo, e de seguida fazia um movimento qualquer com as mãos.
‘Deve querer boleia.’ – disse Natália.
‘Se o carro não anda, não há boleia para ninguém…’ – respondeu Joaquim.
‘Olha, olha’ – Natália apertava o braço de Joaquim – ‘O gajo vem aí!’
Joaquim não prestara muita atenção. Concentrava-se em resolver o quebra-cabeças com que o carro o desafiara. Saiu do veículo após pressionar o botão que abre o capot. Analisava o motor quando, do seu lado direito ouviu:
‘Boa noite, acho que consigo ajudar.’
‘Percebe de carros?’ – questionou Joaquim.
‘Sim. O meu pai tinha uma oficina. Quando era miúdo passava lá muitas horas com ele.’
Joaquim arredou-se para o lado, para que o homem pudesse observar o motor.
‘Não pega. Não sei se é falta de bateria…
Como se chama?’
‘Ricardo’ – respondeu o homem enquanto se inclinava sobre o motor e agarrava uns tubos.
Natália saiu do carro sobressaltada. Afastou-se, e chamou Joaquim à parte.
‘O que é que estás a fazer? O gajo vai-te acabar com o que resta do carro.’
‘Diz que trabalhou na oficina do pai quando era miúdo. Pode ser que até nos safe.’
‘Trabalhou numa oficina, trabalhou. O que ele quer é fingir que está a ajudar, não arranja nada, e pede dinheiro pelo esforço.’
‘Coitado do homem. Mesmo que seja isso que ele está a fazer, podemos bem dar-lhe uma moeda. É Natal…’
‘Tem um kit de ferramentas?’ – perguntou Ricardo.
‘Tenho.’
Ricardo apertou qualquer coisa e deu duas pancadas no motor.
‘Oh, oh. Ó Quim, ele sabe lá o que está a fazer. Agora está às pancadas. Isso era o que eu faria… e eu não percebo nada de carros.’
Ricardo espreitou pelo lado esquerdo do capot e disse:
‘Ó amigo, dê à chave se faz favor.’
Joaquim sentou-se ao volante, deu à chave e o barulho do motor fez-se ouvir. O carro estava a trabalhar.
Natália sorriu e bateu palmas.
Joaquim pegou numas moedas que estavam entre os bancos da frente e saiu do carro.
‘Então o que era?’ – perguntou Joaquim enquanto largava os trocos na mão do homem.
‘Tinha o conector da bateria desapertado.
Muito obrigado…’ – disse Ricardo, enquanto guardava as moedas no bolso.
‘Sou o Joaquim’
‘Obrigado, Joaquim.’
‘Eu é que agradeço, Ricardo.
Se não for inconveniente perguntar… se o seu pai tinha uma oficina, como é que acabou aqui? Assim, na rua?’
‘O meu pai coitado, teve de emigrar porque o negócio estava mau. E nunca mais soube nada dele. Disse-me que provavelmente nunca mais nos veríamos. Não porque não quisesse, mas porque a vida não estava fácil e ele teria de ir para bem longe. Não me levou, porque a vida lá seria muito pior para mim. Deixou-me com os meus avós. A minha mãe nunca a conheci, morreu no meu parto. E os meus avós, entretanto morreram também.
As coisas vão acontecendo, e quando damos por isso… estamos na rua.’
‘Pois…’ – disse Joaquim com um ar consternado.
Em momentos como este, ninguém sabe o que dizer: não dizer nada é falta de educação, dizer alguma coisa é inútil e inconveniente.
Despedidas, agradecimentos e bons Natais trocados, Joaquim e Natália meteram-se dentro do carro.
Mas antes de partirem, olharam-se, e comentaram a triste sorte deste homem. Compadecidos pela sua história, chegaram à conclusão de que o deviam convidar para jantar.
Convidaram…
Ele aceitou.
Primeiro Capitulo do conto, “Companhia de Natal”
Por: Simão Crespo João (Apresentador do Podcast Tenho Media Pa’Isto e Criador do Enso Project)