O Capitão
São cinco e meia da manhã e ainda não é dia. A rua vista da janela está tão escura como se fosse meia noite e faz um frio de rachar que me dificultou a saída da cama, onde os lençóis e os cobertores faziam um ninho aconchegante. Foi com esforço que nos levantámos, vestimo-nos à pressa e corremos escada abaixo direitos a um pequeno almoço reforçado.
– Vamos embora. Despachem-se molengões.
Olhámos a figura que entrava na sala. Era impressionante a diferença de energia que existia entre ele e nós. De certeza que o avô já estava acordado e de pé há muito, enquanto nós nos tínhamos esforçado para sair da cama e agora nos esforçávamos para manter os olhos abertos.
– São 5h30 da manhã – resmunguei – não se vê um palmo à frente do nariz, está frio e tenho sono, por isso não me apresse.
– Molengões – foi a resposta seca – se todos os marinheiros fossem como vocês, estava bem arranjado.
Ninguém lhe respondeu, nem valia a pena contrariá-lo.
Homens como ele, que passaram a vida a mandar, não gostam de ser contrariados e nós nunca o contrariávamos nem discutíamos com ele, apesar de sabermos que por vezes tínhamos razão.
Por fim levantámo-nos da mesa e saímos de casa.
Enquanto nos arrastávamos pelo cais ele passou por nós em passo apresado.
– Despachem-se – gritou – vamos ver o nascer do sol na amurada.
Foi o gatilho para nos apresarmos. Ver o nascer do sol é um dos espectáculos mais bonitos do mundo e nós adorávamos vê-lo. E visto ali então, era ainda mais bonito.
Embarcámos, despachamos todos os procedimentos, e saímos a motor. E como ele previu, vimos o nascer do sol da amurada num silêncio e união perfeitos. Levámos o barco para o largo e cada um de nós se ocupou das suas tarefas a bordo.
– Isto é uma loucura – sussurrou-me o meu irmão quando me apanhou sozinha.
– Porquê?
– Vir para o mar sozinhos, com um velho capitão da marinha que já não sabe onde é o Norte, é uma loucura. O velho está louco. E nós ainda mais por termos concordado com isto. O tempo está instável, e as previsões não são animadoras.
– É preferível virmos com ele do que ele vir sozinho como queria. Lembra-te de que é a sua última viagem. Temos a obrigação de a tornar especial. Ele tem o seu feitio, mas ama-nos e fez muito por nós.
– Eu sei, mas temos que estar sempre de olho nele. Por segurança.
– Estás a delirar. O avô está muito bem capaz de fazer isto. E conhece melhor o mar a dormir que nós os dois acordados e de olhos bem abertos.
Em silêncio olhámos para ele, que sentado na sua cadeira contemplava a imensidão do oceano.
Tinha passado toda a sua vida um mar.
O mar tinha sido a sua casa e o seu trabalho até ao dia em que a minha mãe e a minha irmã mais velha morreram.
O mar que amava e honrava, era o mesmo que lhe tinha tirado a sua única filha e a primeira neta. Desde o dia do naufrágio que nunca mais olhara o mar com amor, mas isso já tinha sido há mais de vinte anos, eu e o meu irmão ainda éramos pequenos, mas ficáramos com essa memória gravada, e a partir daí nunca mais saiu para o mar, dizia que o elemento que ele mais amara em toda a sua vida o traíra e lhe levara os seus bens mais preciosos. Só agora, que insistia que ia morrer, queria voltar para ele. E nós acedemos à sua vontade.
Apesar do trauma que o mar lhe dera, nunca nos limitou no nosso gosto e vocação marítima. Aprendemos a navegar com o nosso pai e o meu irmão decidira seguir o seu percurso na marinha.
Ao fim de quatro dias no mar, com tudo a correr de feição, fomos presenteados com o velho capitão a cantar novamente as velhas canções de marinheiros que nós nunca tínhamos ouvido, mas sabíamos que não eram cantadas há muitos anos. Ficámos felizes de o ouvir.
Ao fim da tarde sentou-se ao pé de mim, puxou uma fumaça do seu velho cachimbo e disse-me:
– Elas vêm aí.
Olhei-o sem entender.
– Quem?
– A tua mãe e a tua irmã.
Não lhe respondi e um medo inexplicável apertou-me o coração até me deixar com falta de ar. O avô olhava o horizonte com um olhar vago e murmurava sem parar:
– Elas vêm aí … vêm, vêm.
No dia seguinte procurou o meu irmão. Deu-lhe uma medalha e disse-lhe:
– Toma, é para ti. Deram-me quando acabou a guerra. Pela minha participação no Dia Mais Longo. Guarda-a bem, é a tua medalha por salvares a tua irmã.
Ele olhou-o sem entender nada do que o avô lhe dizia, e ficou a vê-lo afastar-se a assobiar baixinho uma velha canção de marinheiros.
Naquela noite fui acordada abruptamente pelo balancear brusco do barco. Levantei-me num ápice e corri para o convés ao encontro do meu irmão que estava de turno. Tinha-me deitado com o céu estrelado e o mar sereno e sem vento, mas agora o céu estava coberto de nuvens escuras, a lua tinha desaparecido, estava escuro que nem breu, o vento levantara-se forte e as ondas batiam com violência no casco.
– De onde surgiu este temporal? – gritei para o meu irmão.
Ele não me respondeu ocupado com as manobras, mas levantou a cabeça para o céu quando os raios e os trovões se fizeram ver e ouvir.
– Não faço ideia- gritou-me por fim – nada fazia prever.
– O que faço?
– Temos de manobrar bem o barco para não virámos.
Acenei que sim e durante toda a noite lutámos contra a tempestade.
E fomos vencidos.
De madrugada entrei na camarata do avô. Ele nunca aparecera no convés, mas estava na hora de abandonar o navio. Quando entrei olhei-o surpreendida por entre o medo que começava a dominar-me.
Estava de pé, impecavelmente fardado e muito calmo.
Passou por mim sem pronunciar uma palavra e subiu.
Juntámo-nos ao meu irmão que estava a preparar o salva vidas.
– Avô – gritou-lhe – entre.
Ele abanou a cabeça muito calmamente.
– Não, eu não. Eu vou com elas.
– Deixe-se de disparates e entre – gritei-lhe já em pânico.
– Não! Vai tu rapariga.
E praticamente me empurrou para dentro da balsa com uma força de que já não o julgava capaz. Fez o mesmo com o meu irmão e depois desprendeu a corda que segurava a balsa ao barco, o que fez com que nos afastássemos rapidamente, levados pela força das ondas.
Deixámos de ver o barco ao mesmo tempo que a trovoada e o vento aumentavam. Ainda lhe gritei, mas a minha voz perdeu-se no vento. E tão inesperadamente como começara a tempestade começou a amainar.
Com o nascer do dia tudo o que conseguíamos ouvir era o silêncio. O sol escondia-se atrás de um denso nevoeiro e não fazíamos ideia de onde estávamos. Até que com o avançar das horas o nevoeiro dissipou e o sol começou a brilhar sobre um mar azul sereno, tão sereno que era quase impossível acreditar que poucas horas antes tinha havido uma tempestade medonha.
Agora podíamos ver claramente o que se passava há nossa volta. Olhámos em todas as direções e até onde a nossa vista alcançava não havia sinais nem do barco nem do avô.
Nem eu nem o meu irmão chorámos e graças à sua coragem e prática conseguimos salvarmo-nos.
Tempos depois o meu irmão procurou-me.
– Estive a estudar os mapas e as cartas marítimas, o sítio onde naufragámos e o avô morreu é o mesmo onde naufragou o barco em que a mãe e a nossa irmã morreram.
Olhei-o abismada.
– Agora compreendo tudo o que ele nos dizia. Mas como é que ele sabia? É impossível ter planeado tudo o que aconteceu. A tempestade…tudo…
Nós nunca o saberíamos. Mas o avô sabia, sabia que na forma de uma tempestade, a minha mãe e a minha irmã o vinham buscar para junto de si.
Agora o avô era de novo um capitão da marinha, manobrando um barco seguro, num mar eternamente calmo e com a certeza de chegar sempre a bom porto.
Por: Mónica Guerra (Escritora e Autora das obras “Inverno” e “Primavera”)